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Artigos Blog 20 de dezembro de 2022

Reação terapêutica negativa em dependentes químicos

Paulo Valdonado

Writen by Paulo Valdonado

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A escolha do tema “ As Relações de Dependência do Eu: estudos da reação terapêutica negativa dentro do quadro de dependência química“ deu-se por conta de práticas e observações clínicas em Comunidades Terapêuticas realizadas no período de maio de 2020 a janeiro de 2023 onde, surpreendida por pacientes que, ao vislumbrar a evolução do seu tratamento – ponto no qual o paciente reconhece seus conflitos, percebe suas resistências, pontua suas projeções, elabora seus conteúdos e torna conscientes seus desejos, fantasias e repressões – apresentam o que Freud (1923- 1925) denominou de reação terapêutica negativa. Toda solução parcial, que deveria trazer – e traz em outros – uma melhora ou suspensão temporária dos sintomas, nesses pacientes provoca um momentâneo exacerbar do sofrimento, eles ficam piores durante o tratamento, em vez de melhorar. (Freud, 1923-1925, p. 61).

Há, portanto, na dinâmica psíquica deste paciente, algo que faz o caminho contrário ao tratamento, pois esta se apresenta como ameaçadora. Este paciente, ao apresentar a reação terapêutica negativa, indica que, para sua dinâmica de funcionamento psíquico, existe a necessidade da doença, acima da necessidade do tratamento.

Segundo Melanie Klein (1936), a cura provém da reparação, um termo psicanalítico que assinala um desejo de o bebê restaurar o objeto materno existente dentro de si, sendo um mecanismo específico da posição depressiva, quando o bebê introjeta o objeto total, unificado, ao mesmo tempo o seio bom e mau, simultaneamente amado e odiado. O bebê percebe a mãe como objeto total, agora separado de si e sente culpa pelos seus fantasmas de destruição e de ataque ao corpo da mãe. Assim, surge o anseio de restaurar e reparar o mal que lhe fez. Pelas fantasias e atividades reparadoras, a criança pode superar ou não a culpabilidade e das angústias que resultam dos seus fantasmas destrutivos, procurando sempre preservar a integridade do corpo da mãe. Essa luta entre amor e ódio, com todos os conflitos que ela provoca, começa no início da infância e continua ativa pelo resto da vida.

Trata-se de um sentimento de culpa inconsciente, que se apresenta de maneira muda ao paciente, o qual é interpretado como resistência. A expressão “culpa inconsciente” é pouco aceita pelos pacientes. Uma forma de sofrimento é então substituída por outra, e vemos que, importava apenas poder conservar certa medida de sofrimento (Freud, 1923) – a qual se pode chamar de necessidade de punição. Os sentimentos de culpa estão alicerçados em conteúdos reprimidos, presente, principalmente, nos distúrbios neuróticos.

A reação terapêutica negativa se apresenta como apenas um dos fatores motivadores às faltas constantes (em sua maioria sem prévias justificativas) dos pacientes, ao abandono do tratamento, aos atrasos, e a não formação do vínculo terapêutico.

A observação dos pacientes que chegam às comunidades terapêuticas também motivou um questionamento sobre a reiteração ou “coisificação” dos indivíduos e de suas relações interpessoais. “Coisificação” é uma palavra derivada do verbo coisificar, que significa reduzir o ser humano, ou elemento(s) ligado(s) a ele, a valores exclusivamente materiais; ou num segundo sentido, significa tratar como coisa. Braz (2006) salienta o ponto principal a ser considerado: a “coisificação do ser humano” só ocorre se houver, paralelamente ou anteriormente, a “coisificação de si próprio”. A coisificação ou reificação é um atentado contra o ser humano, enquanto humanidade, pois quando algo que não tem características de objeto, mas é tratado como um, então estamos diante de uma condição de despersonalização do humano. É a anulação do humano nas relações interpessoais, pois quando se nega toda e qualquer possibilidade de manter as características humanas enquanto próprios de humanos, estamos na condição reificadora. Não existe possibilidade de reconhecimento na reificação, pois ela implica na ausência existencial de um humano para com outro. Não tomar mais parte da existência do outro, é tratá-lo como objeto, como coisa, algo inanimado (Neto, 2021). O processo de reversão da coisificação do dependente químico e de suas relações poderia ser um fator determinante na manutenção do tratamento.

Desse modo, entender os mecanismos para a permanência do indivíduo é ponto fundamental para continuidade do tratamento. Outros resultados positivos de entender o desdobramento da reação terapêutica negativa se destacam:

  • As menores taxas de reincidência em serviços de desintoxicação;
  • Menor envolvimento com o sistema criminal, seja na justiça ou na área prisional;
  • Estabelecimento de vínculo empregatício após alta;
  • Tendência a menor número de admissões em hospitais de emergência;
  • Menores custos médicos e legais para o serviço público.

Ressalta-se que poucas são as Clínicas Especializadas e Repúblicas Terapêuticas encontradas no Brasil, talvez em decorrência do fato da cultura do afastamento social ser o mais utilizado, causando assim uma falsa percepção que todos os transtornos serão sanados após longos períodos de afastamento do meio. Este pode ser, portanto, o maior indicativo dos elevados índices de recaídas. Os ambientes de tratamento encontrados atualmente mais comuns:

  • Grupos de Mútua Ajuda;
  • Comunidades Terapêuticas;
  • Moradia Assistida;
  • Ambulatorial Especializada;
  • Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS – AD).

O termo “alcoolismo”, mostrando que dependência química é uma questão de saúde foi utilizado pela primeira vez em 1849, pelo médico sueco Magnus Huss. A partir de então, floresceram algumas associações religiosas interessadas em facilitar a recuperação dos “alcoólatras” sendo o Grupo Oxford no ano de 1921, um dos mais conhecidos. O grupo de alcoólicos anônimos (AA) nasceu nos Estados Unidos, em 1935 com Bill Wilson e Dr. Robert Smith, que descobriram o grande método de AA para permanecer abstêmio: ajudar outros alcoólicos a manter a própria sobriedade. Hoje está presente em cerca de 180 países. O grupo de narcóticos anônimos (NA) surgiu posteriormente e hoje atua em 144 países, com cerca de 70.000 reuniões semanais no mundo.

As comunidades terapêuticas são ambientes de internação especializados, presente em mais de 60 países, oferecem programas de tratamento estruturados e intensivos ao dependente químico, visam obter a manutenção da abstinência, incialmente em ambiente protegido, e em alguns casos há o encaminhamento para internação parcial e/ou para ambulatório, conforme as necessidades do paciente. Esse modelo de tratamento está embasado na abordagem de ajuda mútua, por intermédio da convivência entre os pares, que é capaz de promover o desenvolvimento de novos hábitos e valores essenciais para manutenção de uma vida saudável. Em derradeiro nos últimos anos, além de manter essa característica essencial, as comunidades terapêuticas se diversificaram, presentemente englobam e combinam com eficácia outros modelos terapêuticos biopsicossociais, como reuniões de prevenção da recaída, aplicabilidade de técnicas motivacionais, elaboração de exercícios relacionados à família, à educação e à saúde física e mental. Dessa maneira, se tornou um ambiente mais eficaz para o tratamento de usuários com duplo diagnóstico e dissemelhantes comorbidades.

No Brasil há expansão das comunidades terapêuticas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, porém em prelúdio no Brasil adveio a fundação da Fazenda do Senhor Jesus, pelo Pe. Haroldo J. Rahm, em 1978, na cidade de Campinas (SP). A comunidade terapêutica considera o uso de droga um sintoma do comprometimento daquele que faz uso nocivo ou é dependente – o transtorno é a pessoa por inteiro, com a vida em crise, incapaz de manter-se abstinente e seriamente disfuncional do ponto de vista social e interpessoal, este pratica condutas antissociais. As comunidades terapêuticas utilizam a comunidade como um agente-chave no processo de mudanças e o seu método é o diferencial em relação as demais modalidade de tratamento. O objetivo específico das comunidades terapêuticas é tratar o indivíduo como um todo, objetivando sua recuperação e transformando positivamente seu estilo de vida e sua identidade pessoal. Para isso, uma série de programas e metas é oferecida aos pacientes em recuperação. Há quatro dimensões comportamentais que são visadas para que o indivíduo opere a sua ressocialização terapêutica objetivamente: 1 – O desenvolvimento individual, marcado pela aquisição de atitudes mais maduras, melhoria na habilidade para lidar com a emoção e a construção de uma nova identidade; 2 – A mudança de aspectos subjetivos do comportamento, relacionado às experiências e às percepções do indivíduo quanto às circunstâncias externas que fomentam o consumo de drogas, prontidão para o tratamento, identificação com o método terapêutico e a percepção crítica da mudança obtida ao longo do processo; 3 – A incorporação de princípios comportamentais e sociais, tais como auto eficácia e o entendimento do seu papel social e da necessidade de se colocar no lugar do outro; e 4 – Integração social, possível apenas se pautada pela cooperação, pela conformidade e pelo comprometimento.

A moradia assistida funciona como uma espécie de comunidade terapêutica urbana, possibilita o tratamento do indivíduo dentro da comunidade em que reside, porém longe do âmbito familiar, com o desenvolvimento da sua autonomia e habilidades sociais. Tem caráter transitório, entretanto, sem tempo de permanência pré-definido. A participação é voluntária e para indivíduos que estão desintoxicados e estáveis, sendo inaceitável a violação da abstinência. Entre outros resultados se destacam: as menores taxas de admissão em serviços de desintoxicação, menor dependência dos serviços de assistência pública, menor envolvimento com o sistema criminal, seja justiça ou prisional, estabelecimento de vínculo empregatício após alta, tendência a menor número de admissões em hospitais de emergência, menores custos médicos e legais para o serviço público. Uma unidade ambulatorial especializada é um centro de tratamento multidisciplinar, composto por médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e educadores. O ambulatório é um ambiente que permite diferentes níveis de atendimento. Alguns princípios norteiam a prática em saúde mental nessas unidades. Além dos preconizados para qualquer ambiente de tratamento, com o fácil acesso, a utilização de abordagens motivacionais e adaptação às necessidades do paciente, um ambulatório intensivo que se preocupa especialmente com a adesão e a permanência de seus pacientes, bem como com a reconstrução de seus vínculos afetivos e de sua integração social.

No início dos anos 2000, o Ministério da Saúde normatizou as diretrizes para a criação e o funcionamento do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS–AD). Segundo a Lei 10216/2001, o CAPS–AD é um serviço de atenção ambulatorial diária, totalmente voltado ao atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso e da dependência de substâncias psicoativas. Os CAPS-AD representam um avanço inquestionável no tratamento dos problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas. No entanto, apesar de se tratar de um serviço altamente especializado e dotado de particularidades, em alguns casos não são suficientes para tratar as necessidades dos dependentes químicos. Parte considerável da rede atual de CAPS – AD ainda apresenta precariedades marcantes, tais como a quase inexistência de retaguarda para internação psiquiátrica ou emergências médicas, a falta de integração com outros serviços de apoio social, ausência de capacitação profissional, deficiência na articulação dinâmica com a atenção básica e insuficiência do quadro de pessoal. O processo de avaliação fornece os subsídios para a elaboração do plano de atendimento. As informações provenientes de três campos da avaliação da reabilitação biopsicossocial auxiliam na construção desse plano: 1 – as condições de vida e o grau de satisfação dos pacientes em relação a elas; 2 – o bem estar psicológico dos pacientes (afeto positivo, negativo e a autoestima); e 3 – o repertório de habilidades, competências, capacidades e limites funcionais, tais como: as habilidades motoras-instrumentais, intelectuais, sociais e sensoriais dos pacientes em seu cotidiano. Diversas estratégias estão incluídas nesse plano e visam atingir os objetivos do tratamento da dependência química. As ambientais referem-se às políticas públicas de saúde e dependência química, bem como à correta política de alocação de recursos, à melhoria dos ambientes residenciais, institucionais, ao acesso a serviços de boa qualidade, associados à formação de equipe especializada e interdisciplinar.

Os três modelos de reabilitação biopsicossociais mais conhecidos são o modelo psicoeducativo, o modelo sociopolítico e o modelo de orientação clínica. O psicoeducativo é pautado pela aprendizagem de habilidades e manutenção de repertórios de comportamento e de

respostas de enfrentamento que possibilitem a adequação entre o indivíduo, a família e a comunidade, com vistas ao restabelecimento de um estado de equilíbrio.

O modelo sociopolítico, ou crítico, parte das referências culturais locais e da elaboração de estratégias de tratamento e de reabilitação. Nesse modelo, todas as redes de intervenção e negociação devem estar conjugadas, tendo por objetivo a inclusão social, o aumento da capacidade contratual e o acesso à cidadania para os indivíduos com transtornos mentais.

Por fim, o modelo de orientação clínica cuja finalidade é a retomada da vida comunitária, a partir das possibilidades de cada indivíduo. Considerando as particularidades do sujeito, do seu convívio com o entorno e das respostas que constrói o modelo procura inseri-lo da melhor forma, sem deixar de responsabilizá-lo pelas escolhas que realiza.

É necessário conduzir a reflexão sobre uma proposta de intervenção biopsicossocial e saúde mental, orientada aos usuários abusivos de substâncias psicoativas em dependência química que trará, através de uma visão fenomenológica, uma contribuição eficaz para melhorar significativamente os índices de reabilitação e reinserção do dependente químico em sociedade que presentemente em nosso objeto de estudo é de penosamente dez por cento. Combatendo um dos maiores obstáculos que é a adesão à terapia, tornaremos de feitio claro a necessidade de se refletir acerca da aplicabilidade de uma abordagem alternativa a considerar o histórico familiar, educacional e jurídico, bem como a saúde deste indivíduo de maneira abrangente, uma vez que a realização de uma reestruturação biopsicossocial seria por finalidade não somente a sua abstinência, mas assertivamente o resgate de sua cidadania, a encontrar novas possibilidades e preterir por estratégias de uma vida saudável e íntegra.

Há uma gigantesca valia em compreender que a dependência química não se resume somente ao contexto psicológico mais também social. As comunidades terapêuticas são consideradas neste presente como um sumo modelo biopsicossocial de reabilitação, por ser um dos métodos de tratamentos em que se é percebida menores possibilidades de reincidência e recaídas. Entendemos que a dependência química destrói os valores e as estruturas sociais do indivíduo, este em muitas oportunidades é marginalizado, engendrando assim um processo de distanciamento de sua reabilitação e fazendo com que o adicto se desfaça de suas habilidades sociais. É acertado que em dado momento tudo isso carece ser reconstruído, entretanto pode se levar anos. Portanto se entendermos os fenômenos que agem na reação terapêutica negativa, no desenvolvimento de estratégias mais salutares, com técnicas de enfrentamento da realidade e

prevenção a recaídas, ofertando ao adicto uma consciência sobre si, sobre o outro e o mundo, de sobremaneira a fenomenologia pode obter resultados mais elevados na sua identificação, alterações de crenças antes distorcidas, alterando o pensamento, o sentimento e o comportamento.